O vício invisível: quando o celular deixa de ser uma ferramenta e passa a nos usar

Nos últimos anos, a cena se tornou comum: em uma sala de espera, no transporte público, no intervalo do trabalho ou até em uma roda de amigos, os olhos se voltam quase automaticamente para a tela do celular. O gesto de desbloquear o aparelho se tornou tão automático quanto respirar. É como se a presença constante do celular em nossas mãos criasse um novo ritmo interno — uma espécie de “batimento digital” que pulsa junto com notificações, redes sociais e mensagens.

Esse comportamento, embora tenha se naturalizado na vida moderna, tem chamado cada vez mais a atenção de pesquisadores, psicólogos e psicanalistas. Afinal, quando o uso de uma ferramenta começa a ocupar o centro da vida psíquica, emocional e relacional, é preciso perguntar: estamos realmente no controle?

Um novo vício?

Ainda não há consenso clínico sobre o uso excessivo de celulares ser, de fato, classificado como um vício nos moldes tradicionais. No entanto, diversos estudos já apontam que o padrão de uso pode gerar respostas neurobiológicas muito semelhantes às de dependências comportamentais, como o vício em jogos ou compras compulsivas.

A liberação de dopamina — neurotransmissor ligado à sensação de prazer e recompensa — é constantemente acionada a cada curtida recebida, mensagem lida ou nova informação acessada. O cérebro, condicionado por esse ciclo de recompensa rápida, começa a buscar mais estímulos, tornando cada vez mais difícil tolerar o tédio, o silêncio ou a espera. Isso ajuda a explicar por que é tão difícil largar o aparelho — mesmo sem haver nada realmente urgente ou necessário ali.

Um vício invisível — e aceito

Existe, porém, um aspecto curioso e alarmante nesse cenário: a aceitação social desse possível vício. Se, em um almoço de família, alguém tirasse um frasco de cocaína da bolsa ou acendesse um cigarro de maconha na frente de todos, é provável que houvesse reações imediatas — olhares de reprovação, advertências, preocupação explícita. No entanto, o uso contínuo e compulsivo do celular passa, muitas vezes, sem qualquer questionamento. É normalizado. Esperado. Em alguns contextos, até incentivado.

O adolescente que não larga o celular durante o jantar pode ser visto apenas como “um jovem típico”. O adulto que mal conversa com os filhos porque está imerso em vídeos e notificações é tido como "cansado" ou "conectado ao trabalho". O vício digital, por estar tão entrelaçado ao funcionamento da sociedade contemporânea, quase nunca soa como um sinal de alerta.

Esse apagamento do sofrimento subjetivo é, em si, um risco. Porque o que é socialmente aceito nem sempre é emocionalmente saudável. E, muitas vezes, o que passa despercebido é justamente o que mais precisa ser escutado.

Dados que alertam

De acordo com o relatório "Digital 2024" da We Are Social em parceria com a Meltwater, brasileiros passam, em média, mais de 9 horas por dia conectados à internet, sendo que boa parte desse tempo se dá por meio de smartphones. Além disso, estudos conduzidos por instituições como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) já apontam que adolescentes que fazem uso excessivo de celulares relatam mais sintomas de ansiedade, depressão, insônia e dificuldade de concentração.

Em crianças, há preocupações crescentes sobre o impacto no desenvolvimento da linguagem, da atenção e das habilidades socioemocionais. Em adultos, relacionamentos afetivos e profissionais também têm sido impactados por distrações constantes, dificuldade em manter conversas profundas e sensação de exaustão mental.

O que muda no comportamento?

A presença constante do celular altera o modo como vivemos o tempo e nos relacionamos com o outro e conosco mesmos. A espera, que outrora fazia parte da vida cotidiana, agora parece insuportável. O silêncio, tão necessário para o pensamento e para o encontro consigo mesmo, muitas vezes é preenchido por vídeos curtos, rolagens infinitas e interações rápidas.

Na prática clínica, é possível observar uma crescente dificuldade dos sujeitos em sustentar a atenção em suas próprias narrativas. Sessões são interrompidas por notificações, e muitas vezes há um mal-estar psíquico relacionado à constante comparação nas redes sociais, ao medo de estar perdendo algo ou à angústia gerada pela hiperconectividade.

Do ponto de vista psicanalítico, podemos pensar que o celular, em muitos casos, atua como um objeto que tenta tamponar a falta — esse vazio constitutivo da subjetividade. No entanto, como todo recurso de tamponamento, ele nunca é suficiente. A satisfação é momentânea, mas logo vem a necessidade de mais estímulo, mais conexão, mais presença digital.

E o cérebro, como responde?

Estudos em neurociência têm demonstrado que o uso prolongado de celulares pode alterar áreas do cérebro relacionadas à atenção, memória de trabalho e controle inibitório. Em especial, o córtex pré-frontal — região envolvida na tomada de decisões, planejamento e autorregulação — pode sofrer impactos em sua funcionalidade quando exposto a estímulos contínuos e fragmentados.

Não se trata de um efeito imediato, mas de um acúmulo silencioso: a dificuldade em se concentrar em uma única tarefa, a impulsividade crescente, a sensação de estar sempre com a mente ocupada e, paradoxalmente, sempre distraída.

Por outro lado, é importante destacar que a neurociência ainda está começando a entender a extensão dessas mudanças. Muitos estudos são recentes, com amostras pequenas ou focados em contextos específicos. Ou seja, ainda não podemos afirmar com segurança todas as consequências de longo prazo — e esse é justamente um dos aspectos mais preocupantes.

O que ainda não sabemos

Como todo fenômeno recente, há muitas perguntas ainda sem resposta. Qual é o limite entre uso funcional e uso prejudicial? O que diferencia um usuário excessivo de alguém com um quadro de dependência? De que forma fatores subjetivos, históricos e afetivos se entrelaçam nesse uso?

A psicanálise nos lembra que cada sujeito tem uma relação única com os objetos que elege como centrais em sua vida. O celular, portanto, não é o vilão em si, mas pode tornar-se um significante importante na economia psíquica de alguém — seja como escudo contra a solidão, como extensão do eu idealizado nas redes sociais ou como tentativa de controlar a angústia.

O que fazer com isso?

Não há soluções fáceis ou receitas prontas. Mas há caminhos possíveis. A escuta clínica pode ajudar o sujeito a se perguntar: o que estou buscando quando pego o celular sem pensar? O que me falta quando o deixo de lado? O que eu perco de mim e dos outros nessa tentativa constante de conexão?

A educação emocional desde a infância, o cultivo de espaços de silêncio e presença, o incentivo a relações mais profundas e menos imediatistas — tudo isso pode contribuir para um uso mais consciente e menos alienante da tecnologia.

Mais do que combater o uso do celular, o objetivo é favorecer um encontro mais honesto com o próprio desejo — aquele que, muitas vezes, tenta se expressar no vazio entre uma notificação e outra.

Conclusão

Vivemos um tempo em que a tecnologia avança mais rápido do que nossa capacidade de compreendê-la plenamente. O celular, com todos os seus benefícios, também revela aspectos da nossa subjetividade que precisam ser olhados com cuidado. O mais alarmante talvez não seja o uso excessivo em si, mas o fato de que ele passa despercebido, silenciado pelo manto da normalidade social.

Como psicólogos e psicanalistas, somos chamados a escutar o que está por trás do gesto automático de desbloquear a tela. E a ajudar cada sujeito a recuperar, pouco a pouco, o espaço da pausa, do afeto e da presença real.