Mickey 17: quando a mudança do olhar muda tudo
Alerta de spoiler: este texto comenta cenas centrais do filme “Mickey 17” (2025).
Em Mickey 17, dirigido por Bong Joon-ho, somos conduzidos a um mundo futurista e gelado, onde a humanidade tenta colonizar um planeta hostil chamado Niflheim. O protagonista, Mickey Barnes, é um "descartável" — um clone criado para morrer em missões perigosas, sendo substituído a cada nova morte. Uma existência, aparentemente, sem valor.
Logo nas primeiras cenas, percebemos que Mickey internalizou completamente esse papel. Ele mesmo se vê como um ser inferior, substituível, sem importância real. Quando é lançado em uma missão que deveria ser fatal, mas milagrosamente sobrevive graças aos misteriosos habitantes do planeta, os Creepers, sua interpretação é trágica: acredita que não foi devorado porque sua carne era ruim, um lixo. Não se vê digno nem do apetite alheio.
Essa leitura revela muito mais sobre como Mickey se percebe do que sobre o que de fato aconteceu. Afinal, mais adiante, por meio de uma conversa com a personagem Nasha, surge uma nova possibilidade: e se os Creepers o pouparam não por desprezo, mas por empatia? E se aquele gesto, antes lido como rejeição, foi, na verdade, um ato de cuidado?
A transformação começa aí — não no fato em si, mas no modo como ele é interpretado. A experiência permanece a mesma: ele foi salvo por criaturas que poderiam tê-lo eliminado (ele teve sua vida salva ali — naquele instante improvável, entre a ameaça e o gesto de compaixão, algo nele foi poupado). O que muda é a lente. Mickey passa a considerar que talvez, só talvez, haja algo nele que mereça ser salvo.
Esse deslocamento na leitura do passado tem implicações profundas: ao perceber que sua sobrevivência pode ter sido um reflexo de valor, e não de insignificância, Mickey acessa um outro tipo de memória — uma memória que não o exclui ou o abandona, mas o reconhece. Não se trata apenas de reconstruir os fatos, mas de se reconstruir por meio deles. A ideia de que foi alvo de um gesto de empatia, ainda que silencioso, abre espaço para algo novo: a possibilidade de se ver com menos dureza, de admitir que talvez não esteja condenado à rejeição eterna, mas que foi, em algum momento, escolhido para continuar.
Esse ponto de virada é também um gesto profundamente analítico. Na escuta psicanalítica, muitas vezes é isso que se tenta construir: uma nova forma de ler a própria história, de ressignificar os acontecimentos e de reposicionar-se em relação ao que foi vivido. O passado não muda, mas o modo como ele opera dentro de nós pode ser transformado.
Quantas vezes nos colocamos na posição do descartável? Quantas vezes acreditamos que algo aconteceu porque não somos bons o suficiente, porque falhamos, porque não merecemos mais? E quantas vezes, ao reler essas histórias com um olhar mais generoso, descobrimos que fomos, na verdade, ignorados por quem também não sabia cuidar, ou protegidos de uma forma que não conseguimos enxergar no momento?
A experiência de Mickey 17 toca em algo essencial: há uma diferença profunda entre o que acontece e o que fazemos com o que acontece. Essa é uma das potências da análise — abrir espaço para escutar o que fomos contando para nós mesmos e, aos poucos, desmontar narrativas que nos ferem, para criar novas que nos sustentem.
Lacan dizia que o inconsciente se estrutura como uma linguagem. E nesse campo, as palavras, os sentidos, os significados são tudo. Mudar um olhar é também mudar o lugar que se ocupa na própria história. É sair do papel de “descartável” para perceber-se como alguém que importa — mesmo que isso leve tempo, mesmo que doa no início.
Mickey 17 pode ser assistido em plataformas como HBO Max/Max e também em salas de cinema selecionadas (consulte a programação local). Para quem gosta de ficção científica com um toque existencial, é um prato cheio. Para quem gosta de pensar sobre si, também.

